Os Anestesiados

 

Andaremos todos anestesiados? Alheados da realidade actual da Medicina Dentária? Nestes tempos cinzentos que correm parece que poucos de nós, demasiadamente poucos, se preocupam com o panorama da Medicina Dentária em Portugal. A sensação que me assola o espírito é a de um veleiro navegando em direcção contrária ao vento: poderia chegar ao seu destino de modo bem mais cómodo e rápido se o vento fosse de feição, mas é obrigado a ir ziguezagueando para poder avançar na direcção pretendida.

Também é verdade que os meios á nossa disposição, na qualidade de Médicos Dentistas independentes, para tentar fazer ouvir a nossa voz são parcos e de difícil acesso.

Devagar devagarinho, paulatinamente, vão-se degradando as condições de exercício da nossa profissão perante aquilo que considero a anuência resignada de quem nos representa e deveria defender.

O facto é que as condições do exercício da Medicina Dentária nestes últimos 30 anos se alteraram de tal modo que a realidade de hoje pouco tem a ver com o que era antigamente – se é que se pode classificar como antiguidade algo com 30 anos…

Há 30 anos entrei na então denominada Escola Superior de Medicina Dentária da Universidade do Porto. Sabia para o que ia, não sabia o que me esperava. Esperavam-me 3 anos de formação básica com os colegas de Medicina, com os mesmos cadeirões, as mesmas aulas, as mesmas temidas avaliações. Esperavam-me mais 3 anos de formação específica em Medicina Dentária, com professores de alto nível, profissional e humano, de exigente cumplicidade, com vontade, brio e orgulho em bem ensinar a arte. Não havia computadores e aulas com “power points”, não havia tecnologias de media, não havia “show-of”, mas no primeiro dia em que se começava a trabalhar cá fora, tínhamos as ferramentas e os conhecimentos para ajudar quem nos procurava. Não havia disciplinas de ética na faculdade, esta era-nos transmitida e inculcada no nosso dia-a-dia de estudantes.

Quando instalávamos o nosso consultório, ninguém procurava lojas: era imprescindível trabalhar com luz natural. Instalar a sua consulta num centro comercial não passava pela
cabeça de ninguém. Todos se preocupavam em transmitir a seriedade com que se encarava a profissão e todos se orgulhavam em poder afixar o seu nome na fachada do consultório, condição sine qua non para se trabalhar legalmente. Não existiam designações provincianas ou pretensiosas cheias de estrangeirismos ou alardeando supostas, ou ás vezes reais, competências; havia discrição, havia respeito, havia aquilo a que se chama nível…

Existia brio e orgulho na prática da Medicina Dentária. Não havia nenhuma terceiromundialização cujo exemplo mais flagrante e repugnante é a publicidade a que hoje se assiste produzida por infelizes Médicos Dentistas ou com a sua complacência, na TV, na rádio, nos “flyers” que nos irritam os pára-brisas do carro e nos entopem as caixas do correio, nos ecrãs publicitários urbanos, na imprensa; a imaginação humana é o limite…até ás camisolas de equipas de futebol ou ás ementas de restaurantes.

Há 30 anos eram só rosas? Não, certamente que não. Havia exercício ilegal da profissão de difícil controlo. Mas não havia ERS, ARS, DGS, SIRAPAS, SINAS, INFARMEDS. Não havia obrigatoriedade de vinhetas, certificações e certificados, licenças e licenciamentos, placas e plaquinhas. Imperava o bom senso e a responsabilização profissional individual. Não eram imprescindíveis computadores com ligação á internet e telemóveis e sites e etc e etc que nos
infernizam o dia-a-dia no consultório. Sob o pretexto do controlo do exercício ilegal aceitaramse uma panóplia movediça de exigências, muitas delas irracionais, esteréis e infrutíferas. Teria bastado balizar o tal bom senso e responsabilidade profissional.

Há 30 anos atrás não se falava em sub-emprego nem em desemprego entre os Médicos Dentistas. Hoje é uma realidade que se começou a prever e temer há cerca de 25 anos quando abriu a primeira faculdade privada de Medicina Dentária. Consultórios fechados e colegas, não apenas recém-licenciados, com situações de falta de trabalho, agravado pela crise actual, são uma dura realidade dos nossos tempos. Não havia exportação forçada de Médicos Dentistas; forçada pelo excessivo numero de faculdades que todos os anos debitam jovens licenciados para um mercado de trabalho saturado. Não havia seguros dentários que empurram muitos de nós para situações vergonhosas, degradantes, perigosas. E tal como hoje, não havia lugar para a Medicina Dentária no Sistema Nacional de Saúde. Deve ter sido a única coisa que em 30 anos não mudou…

Espero poder voltar a muitos dos temas aflorados acima numas próximas oportunidades.

Entretanto, participe no que se pretende uma salutar discussão de temas relacionados com a nossa profissão. Escreva para o correio do leitor, deixe a sua opinião.

Rui Paiva

Médico dentista, OMD 633

paiva.rui@sapo.pt

– Artigo publicado na revista Saúde Oral, Junho 2014

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